domingo, 14 de abril de 2024

O destino da mulher de sal

    Não é muito grande — coisa de menos de dez metros quadrados — não é um primor estético, tampouco indispensável a qualquer coisa cotidiana. Mas é um descanso inusitado para os olhos no meio da rua, da semana, da dureza dos dias. Não é estrategicamente localizado ou milimetricamente projetado, não tem a intervenção de um profissional, nem operacional tampouco de planejamento. Mas, ainda assim, parece racionalmente concebido. Há uma estrutura ali que captura os olhos, uma dinâmica de cores, formas e tamanhos que apaziguam angustias; é uma organização esquizofrênica que nos perdoa pela nossa própria bagunça. Um monumento à simplicidade, ao rústico, ao caótico e ao lento.

    É um retângulo de concreto, semelhante a um tanque desses em que se mistura massa de cimento em grandes canteiros de obras. Mas, neste caso, em proporções muito menores, fixado ao chão, repleto de terra e adubo.
    Nas bordas do retângulo cinza, cacos de pisos, de diversos tamanhos e cores, que salpicados formam prismas de luz nas paredes e muros da casa, quando um raio de sol bate. Só por esse instante valeria a contemplação, só por essa luz o jardim doméstico parece monumental.  Mas ainda há as instalações excêntricas com garrafa pet para afastar os gatos, da casa e da rua, das flores mais sensíveis e um universo de insetos que se nutrem, reproduzem e mantêm esse inusitado bioma.

    Quando me mudei para o prédio recém-construído, esse universo multicolorido já existia na mesma rua. A primeira vez que o vi, tirava medidas da janela para instalar uma persiana, a qual mantenho sempre aberta, quando estou em casa, para não perder o espetáculo comezinho da natureza tutelada pela maior responsável pelo retângulo mais colorido da cidade. 
    Acompanhei o plantio e o desenvolvimento de grande parte da coleção de mudas que resiste lá agora, também testemunhei o desgaste natural da jardineira, que já era bastante idosa quando a conheci e fiquei sobressaltada com cada um dos acidentes que ela acumulou nos últimos anos.
    Mas quando seu corpo sofria um impacto maior, era comum assistir e participar do rodízio entre voluntários que se organizavam no seu portão e apareciam para ajudá-la com o jardim, sensibilizados pela importância que ela sempre deu a ele e mobilizados pela beleza que ela proporcionava a qualquer um que passasse em frente ao retângulo das boas intenções.

    Eu mesma aprendi a cuidar de Begônias, Girânios, do Camarão Amarelo, Lavanda, Girassol e até dos musgos, na casa dos fundos do meu prédio. Aprendi a ver a profusão de cores de muito perto, sentir as raízes e o movimento que as minhocas fazem ao manterem o solo arejado. É como se pudesse contemplar um Van Gogh a centímetros de distância.
    Descobri, ainda,  que dividíamos muitas semelhanças, profissionais, gostos gastronômicos — doce de laranja cristalizada, arroz doce, bolinho de mandioca, lambari frito, romeu e julieta —, a reverência  à natureza e à liberdade dos seres, o gosto pelo cheiro da terra e o apaziguamento junto ao trabalho manual. 
    Conheci da jardineira a sua ideologia pelo partilhar belezas, construir afetos sem promessas ou palavras, mas com flores, cores e objetos inusitados. Assisti a sua resistência muito discreta e cheia de dignidade às especulações imobiliárias; vi a sua casa se tornar a última, a única, artigo super valorizado e não cedido por dinheiro algum.

     Nos últimos meses, a saúde da protetora do jardim se declinou ainda mais, seus dias na casa se tornaram menos autônomos e as visitas mais frequentes. Logo, o jardim se tornou ainda mais coletivo, com muitas mãos, muitos tutores, uma espécie de espaço público, mesmo que rodeado por antigas grades. Flores rodeadas de gatos e gente, foi assim que ela viu o jardim da própria casa pela última vez. A dona do retângulo das boas intenções, do espantalho da normose nossa de cada dia se despediu muito frágil, mas consciente de algum legado, eu acho.

    Depois dela, a casa também não resistiu, o telhado colonial da varanda é o primeiro a ser maculado. Cada telha é cuidadosamente removida para ser aproveitada em algum simulacro arquetetônico caríssimo. Cada item retirado é uma despedida da vida que eu conheci até agora.
 
     Por enquanto, o jardim é mantido, empoeirado, sem cuidados, com flores secas, mas seu fim não tardará.
    São seus últimos dias, queria segurar o que não posso. Tenho chorado pelo que ainda existe, mas está perdido. É esse o meu desafio ancestral, ir em frente sem a hesitação da mulher de Ló. Corro sempre o risco de me tornar pedra de sal, assim como a mulher bíblica, não pela insensibilidade, mas pela dificuldade em admitir as perdas e não olhar para trás nunca.

sábado, 13 de abril de 2024

Uma rua com o seu nome

    Há uma rua com o seu nome na cidade. Vi, depois de tantas vezes ter passado por ela e nunca, antes, me atentado. Não é a sua rua, não é o seu nome completo, por isso sei que a homenagem só é para alguém cujo primeiro nome é o mesmo que o seu, mas, ainda assim, há esta rua com o seu nome na cidade. Talvez eu nunca tenha reparado antes porque somente hoje alguém com o seu nome faz tanto sentido para mim, é como se a rua me lembrasse que agora tem você e que nunca mais esse nome será um desconhecido, como fora antes. 
    Na cidade, tem uma rua com o seu nome e a primeira vez que eu a vi determinava ali a sua marca no meu itinerário; passagem que fica. Posso andar bem longe dela, posso nunca mais querer pisar nela, até tentar me esquecer, mas ainda assim terá uma rua com o seu nome.
                                                               
    Tem uma rua com o seu nome na cidade e toda vez que um cão ladra, me lembro da rua; um alarme soa, me lembro do seu nome na rua; uma mariposa dança, me lembro de cada uma das letras do seu nome; um avião sobrevoa a cidade e nela está a sua rua. 
    Uma placa pregada num poste de luz me lembra que depois de você, todas as ruas terão outro significado, pois além da rua que tem o seu nome, tem as ruas vizinhas da rua com o seu nome e as ruas extremo opostas à rua com o seu nome. Uma cidade gira pelo seu nome agora e eu não andarei mais perdida.

    Há uma rua com o seu nome e, depois do que essa constatação me provocou, cogito fazer terapia para não me entregar tanto aos nomes das coisas; penso em procurar um guia espiritual que me afaste da terrível possibilidade de depositar todas as minhas orações no altar que ergui para você, planejo empenhar fuga para um lugar cujo idioma não se pareça com esse nosso, para me afastar do risco de outra rua com o seu nome. 
    Essa rua é um amuleto, um oráculo, um vício, uma chave, uma passagem sem volta ou a galeria para a minha salvação. Essa rua é enigma, é pergunta sem resposta, é uma análise hermética em um livro em latim. Essa rua é o filho dileto sentado ao lado direito do Pai, é o santo do pau oco com contrabando dourado dentro, é a insurreição que explodiu numa madrugada. Essa rua é o beco sem saída, a rua da amargura e as cadeiras de sol coloridas na calçada, com senhoras distintas, brindando com o refresco.

    Tem esse seu nome em uma rua pela qual eu passava incólume e agora ela abriga cada uma das minhas evasões; nunca mais a minha geografia será a mesma.
     Tem uma placa pendurada, com um certo nome, no poste de uma rua e toda vez que a leio tenho taquicardia e suspiros muito públicos, por isso eu me pergunto: posso ainda ser uma feminista?
    Uma rua pequena com casas comerciais em um canto obscuro da cidade é chamada pelo mesmo nome que você, mas eu passo por ela como se fosse a Champs Elysees e eu me indago: ainda posso ser decolonial?
    A rua com o seu nome me desestabiliza, tem calçadas de paralelepípedos irregulares, mas contornos delicadamente pintados de cal. Essa rua pequena, sem grande importância no mapa da cidade é, agora, meu referencial; teórico, metodológico e geográfico. Essa rua derrotou o meu flanar. A rua com o seu nome, contaminou meus calcanhares, meus músculos e minhas aspirações de nunca me ancorar.

     Há uma rua que desafia a minha cartografia, meus dogmas, minhas crenças, minhas ambições, metros de pedras cinzas que freiam a minha marcha rápida e exigem que eu seja mais lenta e ponderada. Há no Centro da cidade, essa rua com o seu nome e, para mim, identidade. As pedras da rua murmuram o que eu já sei e há muito, mas negava; há esse lugar dentro de um outro lugar.
    Gosto dela, mas também acho que é a minha derrocada. Passo por ela e também a evito. Defendo a sua singeleza e ataco a sua insignificância. Quero morar na rua, mas também quero viver muito longe dela.
    A rua com o seu nome não me deixa mais ser pacífica, suas casas, seus postes, arbustos em jardins domésticos me deixam em constante alerta. Já não sei mais só esquecer e a culpa é essa rua com o seu nome no meio da minha cidade.
 
    Na cidade sitiada, uma rua com o seu nome é refúgio, choupana na praia deserta, chalé nas montanhas, férias agendadas, absolvição por todas as ruas pelas quais passei e não tinham o seu nome. É a facilidade de chegar ao outro lado, de partir e também ficar. É uma rua completa, de casas, luz, coleta de lixo, humores matinais, sinal de celular, wi-fi e cachorro caramelo. É uma rua singular, mas igual a qualquer outra do país. É muito sozinha, mas relativamente frequentada; não é tombada pelo patrimônio histórico, mas é um legado do qual eu nunca me esqueço.
    A rua com o seu nome é a referência que não esquecerei até ter que parecer ter esquecido. É a linha na planta da cidade que eu saberei apontar até o fim.

   A rua com o seu nome não é minha, meu CEP não aponta para lá.  Moro noutra rua, a com o seu nome é só a minha passagem diária para me lembrar que morar ainda não está disponível para mim.
    Tem uma rua com o seu nome e ela me leva para todos os lugares, mas em nenhum você está. Uma rua com o seu nome se instalou na minha história e eu só saberei contar sobre ela quando puder falar sem suspirar.
 



domingo, 7 de abril de 2024

O que acontece quando nada acontece

    Uma mulher tenta passar despercebida, mais uma vez, pela porta de entrada de uma casa de repouso para idosos. Magra, pequena, de cabelos completamente brancos, parece confusa. No jardim, um senhor espera por um cortador de unhas que um parente prometeu buscar, enquanto o deixava sentado, esperando sob o sol: 
— Comi duas bananas e tomei café.
    Ele repetia insistentemente. E, por isso, existia, pelas bananas e o café às quinze horas.
    Olhos apertados, para protegê-los da luz, espera pelo parente e pelo cortador. Tinha um sorriso conformado, enquanto contava, orgulhoso, sobre as duas bananas. A camiseta colorida ostentava a frase: Vô do Arthur. Mas acho que não era o Arthur quem buscava o cortador de unhas. 
    Já a mulher idosa insiste, chega a colocar um dos pés para fora do prédio, mas é impedida de avançar por um funcionário que mente:
    — Você vai sair, mas só depois que o médico autorizar. 
 
    Um homem, também velho, com a camisa da seleção brasileira de futebol circula, entre os vistantes, de cadeira de rodas e semblante duro; nenhuma visita hoje era para ele. É agressivo com alguns visitantes que não foram lá para vê-lo; ameaça "passar por cima" de quem não der licença, quando ele se aproxima.
    Na mesa ao lado, uma família divide um litro de guaraná e salgadinhos, cantam parabéns, mas o aniversariante não sorri, só come uma empada, enquanto segura um copo descartável. 

    Nos sentamos muito próximas, mais do que consegui durante a vida toda. Cabelos grisalhos e muito curtos, seu corpo parece maior desde a última vez que a vi, ela mede o seu punho direito, com o círculo que faz com o dedo médio e o polegar esquerdo; faço igual, mas não sei o porquê. Tento a todo custo restabelecer uma comunicação perdida há muito tempo. 
    Unhas pintadas de rosa-choque, pijama de poás e chinelo da mesma cor. Nunca a tinha visto vestida de rosa e, agora, ela é toda essa massa de cor doce, alegre e infantil. Alguém que foi visitá-la levou duas maçãs e um chocolate; ela segura a sacola de presentes com firmeza. 
    Nos fundos da casa, identifico as árvores frutíferas, aponto e nomeio em voz alta: goiabeira, ameixeira e um abacateiro ao fundo. Ela acompanha com os olhos o meu dedo, mas segue calada. Nenhuma árvore é dela.

    Uma mulher muito velha segura um bebê imaginário e balança o próprio corpo na tentativa de niná-lo. O movimento parece atender mais a uma necessidade dela em se acalmar do que fazer dormir uma criança que já não está lá. No pátio, uma outra mulher de mesma idade molha plantas com um regador imaginário; absorvidas pelo trabalho, não tentam fugir, tampouco agredir as visitas. E quando eu só tiver a imaginação? A que trabalho irei me dedicar?
    Cerceadas de um mundo instalado na produtividade, sem liberdade de escolher para onde ir, mas lúcidas do seus papéis que desempenharam naquele outro mundo, as mulheres na casa de repouso não descansam um só dia.

    Quando já não temos mais meios de compreensão, o silêncio completo é pesado e incômodo demais para ser superado; é hora de ir embora. Me despeço e ela não insiste na duração da visita. Nós duas sabemos quando acaba. Encontro a saída, mas a porta está fechada, cinco senhoras tentam me ajudar, cada uma a seu modo. Um delas diz que para abrir a porta é preciso um código:
    — Um número que só os grandões têm.
    Procuro um funcionário por perto e não vejo nenhum. Minha companhia rosa sai à procura, ela quer me libertar agora. 
    Um homem jovem e alto vem nos resgatar, digita a senha, a porta se abre, mas nunca mais saímos. Zezé ficou com o chinelo rosa de borracha, duas maçãs e um chocolate meio amargo; eu fiquei com o silêncio.
   
    Mais tarde, uma mulher adulta com medo, fala de solidão na mesa de bar."Somos tão sozinhas" é uma frase de um poema da Mar Becker e uma cena de Roma, do Cuarón. A mãe da mulher no bar está sozinha, as mulheres na casa de repouso também. Ainda me lembro do homem de sorriso conformado, apregoando a vitória de duas bananas consumidas no café da tarde. Minha companhia ganhou duas maçãs e parece tão triste ainda. Talvez porque não tenha uma camiseta com a inscrição de ser avó de alguém ou porque nenhuma árvore é dela. 
    "Somos tão sozinhas" é como uma onda que ecoa na minha cabeça e eu não conto para a mulher no bar, porque quero poupá-la de algo para o qual eu não tenho resposta. Só ouço a onda e as queixas dela.     "Somos tão sozinhas", mas cinco mulheres, sentadas perto da porta aparentemente intransponível, tentaram me ajudar a sair hoje. Não há diferença entre nós. São os "grandões" que abrem e fecham as portas ainda.

    No noticiário da noite, um carro de luxo, uma morte, um suborno, no mínimo, doloso. E depois, uma matéria sobre uma delegacia que não faz ocorrências e manda a vítima voltar para a casa do agressor. Não há maçãs e chocolates suficientes para nos fazerem sorrir.
    Uma menina adoece e, ainda brinca, tão frágil abana a mão para a visita e sorri quando alguém pede uma foto. A sobrevivência é um desejo neonatal. "Somos tão sozinhas", mas não hoje, Cuarón e Becker, eu tenho a menina e a mulher de unhas rosas comigo.
 
 

 

sexta-feira, 29 de março de 2024

Muito brilhantes para serem tristes, mas muito distantes para serem felicidade

    É um dia cinza de outono, ainda o terceiro da estação, mas já há menos pessoas na ruas; no entanto, eu e ele permanecemos. Como colunas de alguma construção antiga que desmorona; continuamos, soltos, sem paredes que nos acomodem, distantes, sem utilidade evidente, mas sólidos. Com o fim das chuvas de março, estaremos ainda aqui.
    E isso eu só sei, porque é uma espécie de contrato tácito, não faltamos ao nosso dever de comparecer sem sermos necessários. Não temos ponto para bater, relatórios a quem devemos entregar, metas a cumprir, tampouco precisamos argumentar, defender ou concluir algo. E por isso, o compromisso é ainda mais agudo; devemos somente a nós.

    A outra coluna, supostamente, é mais errante, tem mais dias de vida passada e uma sobriedade inconsistente. Frequenta o mesmo quarteirão da avenida com pontualidade e precisão. Não sei se passa as noites também aqui, mas pela manhã, seu cobertor estampado de palmeiras, permanece retorcido na porta da confeitaria. Já foi em frente à padaria, academia, salão de beleza e, agora, em frente à casa de tortas, bolos, doces e cafés decorados.
 
    Por semanas, suas roupas permanecem iguais, calça, camiseta e, quando esfria, blusa de moletom. A mesma combinação por muitos dias seguidos, ainda que as temperaturas tenham alguma variação importante. Com o tempo, as cores do traje ganham camadas de poeira, sujeira, líquidos e outras substâncias que, por qualquer descuido, mancham, provocam nódoas e maculam a limpeza da indumentária. 
    E porque é uma avenida cujo trânsito é intenso e as calçadas, onde ele se senta e algumas vezes se deita, são muito utilizadas o seu asseio é logo consumido. Assisto à estampa de moto do seu casaco ir, aos poucos, desaparecendo sob uma névoa marrom e a calça de brim verde, assumir um tom cada vez mais escuro até chegar muito próximo ao preto.
     
    Mas, de repente, num próximo encontro, ele aparece com o cabelo cortado, a barba feita e um traje inédito e resplandescente. É como se ele recomeçasse mais uma vez. Agora já sei calcular o quanto dura uma mudança, depois dele, não posso mais ser uma boa telespectadora de programas ou quadros na TV que consistem em qualquer transformação estética. O benefício só é duradouro para a plateia.
    De constante, a coluna errante tem o lugar de todos os dias — essa quadra na avenida tumultuada, mas com a vizinhança que se assemelha a um povoado — a inseparável garrafa de plástico com uma bebida etílica e olhos de melancolia — muito brilhantes para serem tristes, mas muito distantes para serem alegres.
    Ele é a coluna de uma casa antiga abandonada, tem história, tem memória de tempos dourados e alguma esperança de ver a casa, de novo, reerguida.

    Não é porque não sabemos o nome um do outro, porque não nos conhecemos mais do que nesse metro quadrado onde nos vemos todo os dias, porque minhas roupas estão sempre limpas e eu corro, enquanto ele anda cada dia mais devagar, que não sabemos um do outro. 
    Esse lençol florido que não estava aí ontem, essa roupa que você troca quando ninguém te vê. Essa profissão que eu não conheço, esses seus passos que um dia foram mais rápidos, essa bebida que o deixa mais vulnerável ou agressivo, alguns dias, e tudo o que também me faz mal e eu não encontro a porta para a libertação. 
 
    Do mesmo lado da rua, a outra coluna constante tem menos passado e mais ilusões de futuro. O pilar de uma construção não terminada ainda, por algum embargo, orçamento contestável ou mudança de projeto, está lá, uma coluna posta à espera de continuidade.
    Com uma muda de roupa limpa a cada dia, com um vício — ou muitos — que não é aparente e cuja errância também pode ser mais disfarçada. Nós — colunas abandonadas de casa antiga e construção interrompida — temos o compromisso da presença, do abrir e fechar a avenida diariamente. Por isso também nos cumprimentamos; nós nos vemos, nós sabemos de nós. Temos mais que a arquitetura em comum. 

    Essa inadequação que cada um de nós tenta superar ou, ao menos, sobreviver a ela. A garrafa de álcool dele, meus dias de quilômetros vencidos; personagens de um pastiche. Duas colunas que queriam ser gregas e que não seguram nada. Mas se ele falta, me sinto menos concreta, menos sólida e o dia não parece merecer o meu esforço de só permanecer. Como pode ser isso de dependermos de uma estrutura que não existe? 
    A coluna que ele é tem segurado minha desilusões sobre mudanças, mas também sustentam a minha insistência em não faltar.


domingo, 17 de março de 2024

Canção para ninguém voltar

   Juntamos todas as cartas de baralho que ainda tínhamos em casa; reis, valetes, damas e coringas, de espadas, copas, paus e ouros, um monte delas e nenhuma que pudesse nos fazer melhores jogadores hoje. 
    Colocamos os baralhos em cima da mesa, como se preparássemos uma isca, algo que pudesse, de novo, nos atrair para uma última partida. Colecionamos cartas, por anos, esperando que elas sozinhas pudessem garantir partidas que nunca acabassem.     Aprendemos o tempo um do outro, prevíamos as jogadas prediletas, líamos a indecisão no cenho franzido, no lábio sutilmente mordido ou nas pernas inquietas debaixo da mesa, sabíamos ganhar e também perder; mas nada disso garantiu que permanecêssemos no jogo. Os montes de cartas estão à mesa, mas ninguém lançará sequer uma espada mais.
    — Escopa!
    Acabou o jogo.

    Cantamos, isolados, numa manhã, várias músicas do Clube da Esquina, duas ou três cantei toda a letra, o restante assobiei o que não sabia de cor. Você cantou o Corsário do João e eu não chorei; a solidão permaneceu geleira intacta. Nem Nascente nem Santo Amaro, nenhuma canção que nos mantivesse em par. 
    Nenhuma cifra, nenhuma nota, nada que nos fizesse cantar juntos de novo. Nosso repertório terminou e não garantimos nenhum coro, dueto ou aplauso. Finalizei com As canções que você fez para mim e nem eco fez. A música começou e morreu solitária em nós. Nem dança, nem ensaio, nenhum passo que sincronizasse o que já fomos. Não faltamos aos ensaios, descansamos a voz quando foi preciso, bebemos água e comemos maçã para mantermos hidratadas as pregas vocais; mas não bastou, desafinamos.
Tampouco embalamos um fim; não fomos capazes de manter o tom no concerto final.

    Esquecemos tudo o que não era bom, engolimos o choro, a raiva, a decepção. Negamos o ciúme, afastamos as diferenças, ignoramos os sinais vermelhos. Desmarcamos a análise, evitamos desabafar com os amigos em comum, ignoramos ligações, sinais e os avisos de que não ia bem. 
    Insistimos no retrato com presentes, declarações românticas públicas, comemorações oficiais e quase nenhuma celebração impulsiva. 
    Esquecemos, depois,  tudo o que era bom, despejamos o choro, a raiva, a decepção pela ilusão desmantelada. Nos queimamos em ciúme, assumimos diferenças irreconciliáveis e paramos no sinal vermelho, cada um numa rua. Desistimos dos acordos e dos planos, entregamos as chaves ao locatário e abandonamos os sonhos numa caixa de papelão sem etiqueta. Esquecemos que a falta não apaga o desejo e que o desejo existe também na falta. Só não esquecemos de apagar a luz. Andaremos tateando as paredes por algum tempo ainda.

    Lembramos da marca da ração do cachorro, dos dias dele com cada um, dos vasos de plantas que dividiremos e dos livros que precisamos separar. Mas lembramos também do aniversário do nosso afilhado, do dia da cirurgia da minha mãe e da formatura da sua irmã. Dos presentes que ainda vamos comprar, mesmo que não façamos juntos e dos que devemos devolver, porque usamos pouco e foram caros. 
    Lembramos que o final de domingo é sempre desolador para ambos, que o calor é insuportável para mim e arriscado para você, que o meu exame de vista está vencido e que o contato da sua podóloga está salvo no meu celular. Lembramos que dois ainda é bom e que um não era mais.

    Condenamos nossas liberdades em favor de uma tradição e, depois, nossos desejos em favor de uma deliberação com mágoa. Julgamos nossas infrações como delitos e nos culpamos pelo que não conseguimos mais jogar, cantar, esquecer ou lembrar. 
    Condenamos os nossos sentimentos e absolvemos nossas certezas. Impusemos o voto de silêncio ao que sentíamos e declaramos inocentes as falsas testemunhas. Desperdiçamos a liberdade provisória e permanecemos em prisão preventiva. Não há relaxamento de sentença a quem se julga culpado. Somos os dois no mesmo tribunal, somos juízes, defesa, acusação e suspeitos. Não há justiça isenta para nós hoje.

    Secamos a louça e as lágrimas; passamos os lençóis e a história limpo; incineramos boletos antigos e sonhos em comum, esvaziamos armários e planos, envenenamos os ratos e a confiança um no outro. Encaixotamos memórias e deixaremos que os fungos consumam lentamente as provas de que, um dia, existimos de outra maneira. 
    Abandonamos o tapete da porta de entrada, um porta-retratos com um casal do cinema italiano e um coração de conchas que ganhamos numa viagem de férias; para um dia, sentirmos saudades dos três itens absolutamente inusitados.
    Aguamos a jiboia, enquanto mantemos o nosso deserto inóspito. Ninguém entra sem anunciar e ninguém sai sem se desculpar; o último que ficar morrerá de sede.
 
    Faltaremos à audiência de conciliação, mandaremos nossos advogados cada qual com um acordo mais razoável possível, mas nenhum que possa devolver o que perdemos na saída. 
    Assinaremos a dissolução, mesmo sabendo que desde o último jogo de cartas já havíamos abandonado a mesa. Fica combinado: o cão comigo a cada quinze dias e o Clube da Esquina em um dueto imaginário.